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Vinho laranja não é modinha. É ética e filosofia

Na paleta de cores do mundo dos vinhos, o laranja (ou âmbar) é o último – mas na verdade é o primeiro.

Edson Rossi

Existe uma deliciosa certeza sobre vinho laranja. É um caminho sem volta. Quem prova se apaixona por esse suposto filho caçula do mundo dos vinhos (foi batizado com esse nome há menos de 20 anos) que nada tem de caçula (porque se baseia em métodos ancestrais de vinificação). Mas apesar de sua oferta crescer em lojas e restaurantes, ele ainda é um grande desconhecido para a maioria dos brasileiros. De acordo com a ferramenta Google Trends (para o período de 10 a 16 de dezembro), as pesquisas mostram que o laranja é tema de nicho, muito atrás da procura por tintos, brancos e rosés. Apenas em três estados – Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo – o percentual chegou a 2% de todas as buscas. No restante do país esse índice variou entre 0% e 1%.

Uma pena, porque vale muito conhecer esse tipo resgatado pelo mítico agricultor Josko Gravner. Ele é o cara que colocou no mapa o vinho laranja – cor e nomenclatura que renega, aliás, já que classifica os seus de ‘âmbar’. Não importa. O restante do planeta chama mesmo de laranja, e assim ficou. Esse italiano de nome nada italiano é um radical. E como todo revolucionário, ama princípios e valores. Em uma emblemática entrevista para a revista Tuorlo, publicação que trata de arte e cultura a partir do universo gastronômico (https://tinyurl.com/ycyx9s2m), afirma que “o ponto de partida de todo vinho é a ética”. A frase é um resumo perfeito do que pensa Josko. Para ele, não se trata de enologia. “É filosofia.”

Foi assim que chegou aos laranjas. Antes, no entanto, houve uma longa e tortuosa jornada. Herdeiro de produtores do povoado de Oslavia, na cidade de Gorizia (Friuli-Venezia Giulia), no nordeste da Itália, as terras de sua família remontam ao começo do século passado numa área que já foi parte do Império Austro-Húngaro (1867-1918), depois se misturaram com a antiga Iugoslávia e ainda hoje se entremeiam por Itália e Eslovênia. Formado enólogo, começou a trabalhar com pai e tio na virada dos anos 70 para os anos 80 (ele é de 1952). Jovem, queria (e conseguiu) impor seu jeito de fazer vinho. Cubas de inox, tudo controlado, barricas francesas… Resultou em brancos (e tintos) premiados. Tudo ia bem até uma viagem à Califórnia. Num vídeo em seu site, Josko diz que foi em 1987 (https://tinyurl.com/55df2bwx). Na época, ali pelo fim dos anos 80 e especialmente nos anos 90, a Califórnia era aclamada como a grande fronteira dos vinhos. Josko odiou o que viu e percebeu que rolava uma brutal massificação nos processos de produção que deixava todos iguais – para agradar críticos e massificar mercados. Vinhos Coca-Cola. Idênticos para o mundo todo em todo o mundo.

Voltou para casa com um sentimento e uma certeza. O sentimento foi de frustração. Passou a questionar seus próprios vinhos. A certeza era a de que não faria mais parte daquilo. “O que vi foi muito triste. Tudo feito do mesmo jeito, tudo vinho igual. Tudo sem alma”, disse para Marija, sua mulher. E tomou uma decisão que mudaria sua história, e a história da vitivinicultura moderna. Para buscar o futuro, ele mergulhou no passado. Estudou a fundo e chegou à Geórgia, onde há 8.000 anos já se fazia vinho. Queria ver de perto o início de tudo. Naquele momento, a Geórgia ainda fazia parte da antiga União Soviética. Um lugar fechado e inacessível para ele. A autotransformação de Josko, no entanto, já estava em curso. “A ideia de usar ânforas. Ter um jardim de ânforas.” Ideia que ainda teria de esperar alguns anos. O tempo das coisas.

De toda forma, Josko estava convencido. Só faltava o plot twist. E ele veio em 1996, por meio de um recado da natureza. Tempestades de granizo que destruíram a maior parte de seus vinhedos. Com o pouco que sobrou, decidiu fazer a maceração (longa) de seus brancos, processo em que as uvas brancas ficam em contato com as cascas. É a pele da uva que dá cor ao vinho, e garante a amplitude dos taninos. Mas os vinhos brancos convencionais (a ampla maioria do que é produzido) não têm esse contato entre mosto e casca. Os dele passaram a ter. E isso trouxe uma cor mais intensa – o tal âmbar que o mundo passou a chamar de laranja –, mais taninos, maior complexidade. Às cegas, eles chegam a lembrar tintos. E obviamente se tornaram vinhos mais gastronômicos que a maior parte dos brancos. Um bom laranja encara menu degustação com louvor.

Pouco depois, em 2000, Josko conseguiu visitar a Geórgia. De lá trouxe as primeiras ânforas – gigantescos vasos de argila que ele enterra para fazer a vinificação. A primeira temporada usando o método foi a de 2001. Esse primeiro vinho em ânfora foi vendido depois de quatro anos. Pouco a pouco foram adormecendo mais tempo. Cinco anos, seis anos. As uvas são colhidas e vão para as ânforas. Estas vão ser fechadas e enterradas. Ficam ali meses até saírem para grandes barricas de carvalho. Dormem anos até chegar às garrafas. “Na safra 2007 passamos a engarrafar depois de sete anos.” Sete é número mágico para Josko. À essa altura, comandava sua operação com Miha, filho mais novo, que morreu num acidente em 2009, aos 27 anos. “Quando passo diante das barricas de minha cantina, meu vinho sabe meu humor. Se estou feliz ou se estou triste”, afirma no documentário inglês Skin Contact: Development of an Orange Taste, de 2016 (https://tinyurl.com/yjtb6489).

Josko é um antroposófico. A doutrina filosófica desenvolvida por Rudolf Steiner (1861-1925) está na base da pedagogia Waldorf, na raiz da medicina antroposófica e na origem da agricultura biodinâmica. E assenta seu olhar de mundo numa santíssima trindade. Terra. Céu. Ânforas. Das ânforas ele traz a sabedoria de que o vinho está no lugar certo. “Junto da terra.” As suas são da Geórgia porque ele diz que a argila de lá não tem cádmio. E tudo é feito sem filtrar. “A filtração é um estresse para o vinho.” Da terra, ele aboliu qualquer produto químico desde o fim dos anos 90. “Porque a fertilização está para a terra como a droga está para o homem. Dá a força e depois mata.” Do céu traz todo o ciclo de colheita e produção. “Eu sempre olho para a Lua.” Josko segue o calendário de Maria Thun (1922-2012), bióloga alemã pioneira da agricultura biodinâmica. Os ciclos da Lua decidem o tempo de tudo. Da uva ao vinho.

Já vai fazer 12 anos que deu outro passo revolucionário. Em 2012, eliminou todas as uvas brancas de suas terras que não fossem a autóctone Ribolla Gialla. Falar dos laranjas, ou de vinhos biodinâmicos e citar apenas Josko Gravner não seria justo. É preciso falar pelo menos de seu vizinho Stanko Radikon, já morto. Ele e alguns poucos produtores disseminaram o laranja, e métodos biodinâmicos. Um nasceu para o outro. Evidentemente, há muito laranja distante disso tudo, mas não os melhores. Josko refuta ter sido o primeiro. E brinca com isso. Diz que faz o que é feito há milhares de anos, então não pode ser chamado de pioneiro. Sabe igualmente, porém, que a intuição de buscar as ânforas para fazer vinho do jeito mais ancestral foi sua. Hoje, os Gravner são tocados por ele, Mateja (filha) e Gregor (neto). Com esse olhar que cada vez mais remete ao passado. Porque a distância de vinhos feitos pro mercado e os feitos por eles é a distância que separa Oslavia da Geórgia. Seu trabalho se resume na simplicidade de buscar sempre o melhor. E disso extrai seus melhores ensinamentos. “Não é preciso beber vinho todo dia. Mas se vai beber, beba do bom.” Mais uma lição de Josko Gravner.

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