Vitor Nuzzi
Guitarra a tiracolo, franzino e com os cabelos todos brancos, mas ainda repartidos ao meio, Odair José saúda o público com sua fala tranquila: “Obrigado pela presença. Espero que não fiquem decepcionados”.
Aos 75 anos, 54 de carreira, ele prepara seu 39º álbum. Avisa que em breve deve sair nas redes uma amostra, a faixa DNA. Além disso, um documentário sobre o cantor está em fase de produção.
Odair faz show de rock. Setentista. Sim, foi mais um garoto que amou os Beatles e Rolling Stones. Que sempre gostou de ouvir rádio. Nascido em Morrinhos (GO), foi para Goiânia e de lá saiu meio escondido para o Rio de Janeiro. Era final de 1968. Ficou em um hotel na praça Tiradentes, com nomes anotados – das contracapas de discos – para procurar e conseguir trabalho. Demorou, mas nem tanto: em 1969 lançou o primeiro disco, independente, e em 1970 estava na poderosa CBS.
Rotulado de “brega”, “terror das empregadas” (Rita Lee) e outros adjetivos depreciativos, Odair José cantou e canta a vida real: prostituição, pílula anticoncepcional, assassinato, homossexualismo. Foi um dos artistas mais visados pela censura, e em certo dia ludibriou o ardiloso estrategista Golbery do Couto e Silva.
Ele contou essa história ao pesquisador Paulo Cesar de Araújo, que coletava dados e depoimentos para um livro sobre a censura aos cantores chamados de “cafonas”. Anos depois, em 2006, ele lançaria outra obra, que praticamente não foi vista nas prateleiras: era a biografia de Roberto Carlos (“Em Detalhes”), que o Rei e seus advogados trataram de proibir. A infindável polêmica sobre as biografias não autorizadas só teve solução – em termos – após julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015. O STF decidiu que não era mais preciso autorização do personagem para que a obra fosse publicada. Apesar disso, o livro de RC não foi reeditado.
Mas de volta à história: há 50 anos, em 1974, a canção “A primeira noite de um homem” foi vetada pela censura. Assunto “totalmente inconveniente”, disseram os censores na apelação. O disco de Odair José estava praticamente pronto para ser lançado. A gravadora Phonogram decidiu, então, mandar o próprio autor para Brasília. E ele conta que falou com meio mundo, até com o ministro Golbery do Couto e Silva, que desde 15 de março daquele ano, início do governo Geisel, havia assumido a chefia da Casa Civil. Era uma das “cabeças pensantes” do regime.
“Chegando lá eu falei com o Golbery e expliquei que a intenção da música não era corromper a juventude, que eu até poderia mudar alguma coisa na letra e tal, mas ele me disse: ‘Não! Está proibida a ideia!’”, disse Odair. Na volta, o compositor resolveu alterar partes da letra, manteve a melodia e pôs o título “Noite de desejos”. Pois a “nova” música foi liberada sem cortes e pôde ser incluída no LP. “Eu enganei o general”, celebrou.
No ano anterior, no show conhecido como Phono 73, que reuniu dezenas de artistas no Anhembi, em São Paulo, Odair José causou alvoroço. Diante de um público de classe média e uma juventude mais “intelectualizada”, ele subiu ao palco com ninguém menos que Caetano Veloso. Cantaram um dos clássicos do repertório de Odair, a explícita Eu vou tirar você desse lugar. Em show já neste 2024, ele lembrou que sempre buscou “quebrar preconceitos e lutar contra a hipocrisia”, cantando a realidade.
A música que talvez tenha feito mais barulho naquele período chama-se Uma vida só. O título em si não diz muita coisa, mas basta lembrar do verso “Pare de tomar a pílula”. De novo, Odair incomodou o governo, que promovia uma campanha forçada de controle de natalidade de mulheres de baixa renda. A canção foi imediatamente para o índex, o que não impedia as pessoas de cantá-la. Curiosamente, os versos de Uma vida só começaram a surgir depois de um encontro de Odair José com o maestro Tom Jobim – em um bar, claro. Na volta para casa, a canção nasceu. Em outro encontro com general para discutir a liberação (que não veio), o atrevido artista chegou a perguntar se ele era gay, porque liberava os Secos&Molhados, mas proibia sua música. Cabe anotar que a banda de Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, sucesso instantâneo na época que surgiu, também enfrentou problemas em Brasília. A música de Odair José fez sucesso também pela América Latina. Era chamada de La Pilula.
Poucos anos depois, de forma sutil, ele fez referência a um dos mais rumorosos crimes da história do Rio de Janeiro: a morte da jovem Cláudia Lessin Rodrigues, em 1977, após uma noite na casa de um figurão. A música chama-se O crime de Barra, bairro que não foi onde o corpo da moça foi encontrado. Outra canção fala sobre drogas, com o sugestivo nome de Viagem. A ousadia prosseguiu e se ampliou com o álbum conceitual O filho de José e Maria. Além do fracasso comercial, o compositor enfrentou a ira da Igreja. Surgiram boatos até de excomunhão. Ele passou anos sem cantar as faixas do disco. No show mais recente, algumas estavam lá, assim como outras que fizeram a fama de um dos mais surpreendentes artistas brasileiros. Sempre de olho no mundo ao redor.