Vitor Nuzzi
A 71ª edição do tradicionalíssimo festival de cinema de San Sebastián, no País Basco, em setembro passado, recebeu 158.194 espectadores, que assistiram 600 projeções de 238 películas, vindas de 58 países. Entre criadores e atores que circularam por ali, a dupla Fernando Trueba e Javier Mariscal apresentou seu segundo trabalho conjunto 13 anos depois da estreia de Chico y Rita. Desta vez, o cineasta e o animador espanhóis exibiram uma película que exaltou a música brasileira e contou uma história cada vez menos lembrada por aqui: a do pianista Tenório Jr. É a história de They Shot the Piano Player (Dispararon al pianista ou Atiraram no pianista), que posteriormente foi exibido no Festival do Rio, em outubro.
Conhecido músico da Bossa Nova, Francisco Tenório Cerqueira Júnior, carioca de Laranjeiras, um bairro tranquilo da zona sul, tinha 34 anos e acompanhava Vinícius e Toquinho durante turnê no teatro Gran Rex, tradicionalíssima casa erguida em 1937, instalada na avenida Corrientes, em Buenos Aires, com capacidade para 3.262 pessoas. Na madrugada de 18 de março de 1976, ele saiu do Hotel Normandie para comprar lanche, cigarros e remédios (as versões variam). Nunca mais foi visto.
Naquela Argentina a seis dias do golpe militar, mas já convulsionada politicamente, ele teria sido confundido com um “terrorista”, sequestrado e levado para a temível Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), conhecido centro de torturas, que hoje abriga o Espacio Memoria y Derechos Humanos. Fica a pouco mais de 1 quilômetro do Monumental de Nuñez, o estádio do River Plate, palco da decisão do Mundial de 1978.
Ex-diplomata, Vinícius ainda tentou descobrir o paradeiro do músico. Amigos se organizaram no Brasil, também sob ditadura. Carmem, sua mulher, estava grávida do quinto filho. Segundo relatos que surgiram posteriormente, Tenorinho, como também era conhecido, foi torturao e sumariamente executado com um tiro na cabeça, nove dias depois do sequestro. Seu corpo não apareceu até hoje.
Trueba estava no Brasil filmando El milagro de Candeal (2004), sobre um projeto social em Salvador, e levou alguns discos para casa. Surpreendeu-se com um solo de piano e quis saber mais sobre o músico. Nova surpresa: havia pouca informação disponível. O faro de criador o levou justamente a San Sebastián, em 2005, onde era exibido um documentário sobre Vinícius de Moraes. Começava uma pesquisa que o levou a entrevistar 150 pessoas, reunir material e ter a “louca ideia” de fazer uma animação.
Ao apresentar o filme na edição do ano passado, em entrevista coletiva, ele brincou. “Me parecia tão insano que não contei a ninguém, acreditando que em algum momento esqueceria da ideia. Não foi bem assim. Os dias passariam, e a ideia foi me parecendo cada vez mais acertada.” Afinal, com esse recurso ele poderia recriar o pianista desaparecido interagindo com a família ou tocando nos mesmos locais que já não existem. Estava em boas mãos. O veterano Mariscal é também o criador de Cobi, mascote dos Jogos Olímpicos de 1992, realizados em Barcelona.
No filme, Jeff Harris, um jornalista musical dos Estados Unidos, investiga a história de Tenorinho – a voz do personagem é de Jeff Goldblum (de filmes como A Mosca e Jurassic Park). Não foram poucos os entrevistados que choraram, tantas décadas passadas, ao lembrar do colega e amigo. “Me impressionou a ternura com que Milton Nascimento recorda da casa de Tenório no Rio. Cheia de crianças.”
Em 1981, Toquinho e Mutinho compuseram Lembranças, música que faz menção ao episódio.
Pedro seguiu seu caminho
Chico pediu pra ficar
Tenório saiu sozinho na noite
Sumiu, ninguém soube explicar
Não é um filme sobre um desparecido, mas sobre um grande artista, afirma o diretor. Pianista talentoso, Tenorinho tocou com todo mundo. Gravou um único LP, Embalo, há tempos fora de catálogo. Participam do álbum, entre outros, Milton Banana (bateria), Raul de Souza (trombone), Paulo Moura e Hector Costita (sax). Ironicamente, o disco é de 1964, o ano do golpe.