Saiba por que a casa comandada por Massimo Bottura se mantém em plena forma e sempre se supera
Edson Rossi
Via Stella, 22. Na esquina da Via Delle Rose. Estrela. Rosas. Para foodies & gourmands do mundo inteiro, o Paraíso tem endereço. E fica nesta casa sóbria, que ocupa o piso térreo (sem janela na fachada) de um prédio com três outros pavimentos superiores, no lindo e embaralhado Centro Histórico de Modena, já no norte da Itália. Uma casa enganosamente humilde. Austera por fora, repleta de arte por dentro. Como a própria comida que será servida ali, na Osteria Francescana, o santuário gastronômico comandado por Massimo Bottura. Lugares assim costumam carregar várias definições. A melhor vem do próprio chef. “Espere o inesperado”, diz Bottura no site de seu restaurante. E é exatamente o que os abençoados que ocupam uma de suas 12 mesas todos os dias, no almoço e no jantar, recebem dele: o inesperado.
Para muitos que desconhecem os raros três estrelas Michelin – são 144 no mundo e apenas 13 na Itália –, a primeira pergunta é quanto custa. Uma visita ao site da Osteria Francescana já mataria essa curiosidade (https://osteriafrancescana.it/). No menu à la carte, há cinco opções de entrada (de 60 a 100 euros), outras cinco de primeiro prato (60 a 110 euros), seis variedades de segundo prato (110 a 150 euros), seis sobremesas (60 euros cada) e a seleção de oito queijos (80 euros). Mas quase ninguém vai lá para isso. Quando estivemos em novembro, numa fria noite de 7 graus e céu sem nuvens, havia em nossa sala 15 pessoas divididas por cinco mesas, e todas foram de menu degustação. São três minientradas, seguidas por 11 cursos (incluindo três sobremesas) tudo finalizado com três minidoces. Custa 325 euros.
Se quiser, você pode pedir o abbinamento, a harmonização com vinhos (oito taças, 210 euros por pessoa). Fosse abbinamento ou fosse escolhendo alguma garrafa, todas as mesas em nossa sala bebiam vinho. A carta de bebidas tem 90 páginas, 95% dedicadas a vinhos (https://osteriafrancescana.it/wine-list/). Os rótulos chegam a 20.000 euros (dois brancos e dois tintos do mítico Romanée Conti), mas começam com garrafas de 35 euros (os imprescindíveis modeneses lambruscos). No nosso caso, pedimos Franciacorta, o tradicional espumante lombardo, também conhecido como o champanhe italiano. Uma garrafa do Riserva Vittorio Moretti 2013 (Bellavista), que custou 185 euros. Foi um acompanhamento perfeito. Águas, café… A conta foi de 840 euros. Com serviço (opcional), mais 100 euros em duas pessoas.
Caro? Depende. Evidentemente, falar de um jantar que custa quatro salários-mínimos num país tão desigual como o Brasil pode ser ofensivo. Mas um programa como este é uma experiência. Algo como assistir no estádio à final da Libertadores com seu time saindo campeão. No caso, foi minha segunda vez na Osteria Francescana. Na primeira, em 2013, ele já era o melhor da Itália, tinha três estrelas Michelin e ocupava o terceiro posto no 50 Best Restaurants. E de lá para cá tudo mudou, mesmo nada tendo mudado. Parece paradoxal, mas a experiência 2023 foi incrivelmente superior à de 10 anos antes. Não creio que eu esqueça deste jantar pela próxima década. Só aí a conta já saiu por menos de 100 euros por ano, ou 8 euros por mês. Acho pouco. O fato é que jantar ali não é programa a ser decidido pela calculadora. Tem mais a ver com uma viagem única. E Bottura faz de tudo para que assim seja.
Ao chegar à Osteria você é recebido por uma pequena brigada numa saleta. Alguém irá recolher seu casaco ou paletó – não há dress code rígido, mas o próprio restaurante recomenda que você use um traje “casual elegante”. De lá é dirigido a uma das duas salas com seis mesas cada. Em caso de grupos maiores (até 10 pessoas) as mesas serão unidas. São cobertas por toalhas brancas que vão quase até o chão. As cadeiras são pretas. Por todos os espaços há obras de arte. Pinturas, fotografias, esculturas. Até o carpete. Bem, não se trata exatamente de um carpete, mas de um revestimento em 3D que imita carpete. Folhas e flores gigantes a seus pés. Parece que você está sobre um gigantesco buquê. Obra do artista-designer holandês Marcel Wanders. É como se Bottura dissesse, ‘você não achou que seria apenas um jantar, né?’. O que ele propõe é uma imersão em arte e história. Porque é assim que o chef enxerga a gastronomia.
Não à toa seu menu outono-inverno é descrito como uma “viagem culinária que reinterpreta pratos icônicos da Osteria Francescana”. Ele tem o nome de We Are Here e é dedicado a Bob Dylan. No cartão que é entregue junto do menu, Bottura diz que “mais de 30 anos de história foram filtrados pelas experiências e origens culturais de mais de 150 pessoas que fazem parte da Família Francescana”. O restaurante fará 29 anos em março de 2024, no Dia de São José. Ganhou a primeira estrela Michelin em 2002. A segunda, em 2006. E tem três estrelas desde 2012.
São 20h e vai começar o jantar. E dele só sairemos às 23h30. Cada mesa será atendida por um time que em nossa sala chega a ter sete pessoas, sendo duas mulheres. Trazem água e longos e finíssimos grissini. E dá-se início à Festa de Babette. Não vale ficar dizendo, ‘Ai, que delícia’. O que importa é saber que à mesa virá uma regra indefectível – e invariavelmente desobedecida na quase totalidade das cozinhas do planeta: menos, menos e menos. Pode-se dizer que a cozinha da Osteria Francescana é uma cozinha sem sal e sem açúcar. Graças a Deus! Porque isso é divino. Nela, porém, haverá sempre o salgado e a doçura. E haverá, claro, acidez, amargor e umâmi.
O rito tem início com três bocaditos, chamados Mare Nostrum/Sotto la Vigna /Carbonara. O primeiro remete a um macaron verde que embute uma explosão marinha. O segundo te leva pro campo. Finaliza com a Carbonara, numa espécie de bombom de porco & ovo. Na sequência virá o festival de supostas brincadeiras, mas que são lições sobre a Itália e o comer. Porque cada pequeno prato traz uma história – que será narrada em inglês ou em italiano pelo garçom –, muitas vezes carregando um nome divertido, para que você faça as suas próprias conexões.
Assim, surgem pela ordem os 11 minipratos: Vignola (um brodo límpido), Uma Batata que Queria Ser Trufa, o lindo Camuflagem do Sul (que percorre ingredientes de Turim a Nápoles), Um Peixe Como Tortello de Abóbora, As Lentilhas São Melhores Que Caviar (lentilhas feitas na tinta de lula), Tortellini ou Bolinho, Mil-Folhas de Folhas e Caça ao Pombo (um duo de peito de pombo quase cru e coxinha de pombo empanada), encerrando a sequência antes das sobremesas. Nada de carne vermelha. Peixe, pouco. Ave, apenas no pombo. Na parte doce chegam Este Porquinho Foi ao Mercado, Consistências de Leite e Ervas e Pão é Ouro. Para encerrar, um trio de minidoces (Zuppa Inglese, Melhor Que Pipoca Como Ração e Uma Mordida do Sul). Tudo é lindo, equilibrado, com o sabor realçado – não o de um tempero, mas o sabor real.
Numa mesa ao lado da nossa, percebemos que uma mulher pulou o Porquinho. Trata-se de uma peça com chocolate que imita o animal, feito em molde, mas que tem ingrediente salgado e levemente gorduroso junto – no caso, de porco. Uma combinação não tão incomum, se pensarmos em sal no caramelo, azeite no sorvete de creme, ou chocolate com pimenta. De toda forma, ter algo do porco em seu chocolate foi demais para ela. O serviço foi superatencioso e levou o prato de volta à cozinha. A iguaria é inspirada numa ancestral receita napolitana chamada sanguinaccio (https://www.gamberorosso.it/notizie/storie/sanguinaccio-napoletano-storia-aneddoti-e-ricetta-della-crema-dolce/), feita com sangue de porco. No começo dos anos 1990 a Itália proibiu que o sangue fosse utilizado em receitas. Nada na Osteria, no entanto, é feito para chocar. Afinal, aproveitar tudo o que se pode extrair de um animal é o princípio de uma cozinha que não desperdiça. Nada. Nunca. Ali, na Via Stella 22, confirmamos que nenhuma manifestação intelectual surgiu antes do comer. É por esse motivo que só existe cultura a partir da comida. É isso que Massimo Bottura e sua equipe nos ensinam. E nos entregam. De forma inesquecível.