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Governo Lula mira diretores de agências reguladoras

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) está na mira do governo federal, tendo em seu principal algoz o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. O ex-senador chegou a dizer que seus diretores “boicotam” o governo por serem aliados ao ex-presidente da República, Jair Bolsonaro. O presidente Luís Inácio Lula da Silva também atira sua metralhadora verbal contra a Aneel ao dizer, em 19 de outubro, que a Aneel “nem regula nem fiscaliza”. 

As investidas contra a Aneel podem soar ao cidadão comum como forma de buscar punições para o apagão na região metropolitana de São Paulo, em 11 de outubro, e que deixou mais de 2,1 milhões de unidades consumidoras sem luz. O ataque do governo federal à Aneel, que já vem se prolongando há quase um ano, tem origem em uma visão de mundo estatista e oportunista, ao tentar tirar a independência das agências reguladoras e adotar a coincidência de mandatos dos diretores com o mandato do presidente da República. 

Também está em estudo em Brasília a revisão da Lei das Agências, de 2019, para que sejam criados indicadores de desempenho para os diretores das agências, o que poderia levar à perda de mandato. Outra ideia é ter um órgão superior das agências, similar ao Office of Information and Regulatory Affairs (OIRA), dos Estados Unidos. 

Ninguém gosta de ser regulado. Como já diz o nome, a regulação significa limitar a atuação de algum agente, para que essa relação seja mais justa com a outra contraparte. A necessidade de se ter um regulador surgiu no começo do século XIX, nos Estados Unidos, em resposta ao conflito entre agricultores e as companhias ferroviárias. Os agricultores, organizados pelo Movimento Granger, se opuseram às tarifas impostas pelas ferrovias, o que levou à criação de leis estaduais para regular os valores. Com o monopólio natural das ferrovias, era preciso que alguém interviesse para garantir uma maior equidade e prevenir abusos. A partir deste conceito surgem as agências reguladoras. 

No setor de energia brasileiro, as agências nascem em um cenário de liberalização econômica, que incluiu a privatização de diversas empresas estatais, especialmente no setor de infraestrutura, como telecomunicações, energia e transporte, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2003). A Aneel foi criada em 1996 para harmonizar as relações entre o Poder Concedente (governo federal e governos estaduais, em alguns casos), empresas (públicas e privadas) e os consumidores. 

No Brasil, décadas após a criação das agências reguladoras, o “ódio” político aos colegiados que não gravitam ao redor de um governo de plantão atingiu o ápice durante a pandemia da Covid-19. O então presidente Jair Bolsonaro comprou briga com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) porque seu indicado, o almirante Antonio Barra Torres, não fez o que o governo esperava dele e perfilou ao lado dos técnicos da agência: defendeu políticas sanitárias de isolamento social, ajudou a aprovar vacinas e rechaçou discursos negacionistas. Em janeiro de 2022, Bolsonaro disse publicamente que a Anvisa era “dona da verdade” e tinha se tornado “outro Poder no Brasil”. A pandemia passou, Barra Torres sobreviveu no cargo e seu mandato na Anvisa termina no final deste ano.

OS ATAQUES À ANEEL POR SILVEIRA

Os ataques do ministro de Minas e Energia ficaram mais intensos antes mesmo da crise da empresa de distribuição de energia elétrica de São Paulo, a Enel (estatal italiana que atua no Brasil também no Rio de Janeiro e no Ceará). 

O ministro Alexandre Silveira já vinha criticando a Aneel ao fazer seu mais básico trabalho, o de calcular as tarifas. Silveira criticava a agência porque as tarifas dos estados do Norte estavam mais altas do que a de outros Estados, o que aconteceu ao longo de 2023. 

O embate começa a ficar mais pesado com o envio de duas Medidas Provisórias (MPs) pelo governo ao Congresso: a MP 1212 e a 1232.

Em comum, as duas MPs tinham o fato de serem criadas de forma a produzirem seus efeitos mesmo sem serem aprovadas. Porém, ambas dependiam de comandos da Aneel para que tais efeitos ocorressem dentro de sua vigência. 

Tal estratégia teve um efeito na relação governo e Aneel: por não dependerem de discussão dos parlamentares, toda responsabilidade sobre a execução dos comandos caía sobre a Aneel. Se por um lado o governo não precisou desgastar-se politicamente em abrir comissão para a MP, designar relator e conduzir as votações dentro dos 120 dias que as MPs vigoram, o relógio estava avançando contra o ritmo de trabalho da Aneel. 

No caso da MP 1212, Silveira e sua equipe divulgavam que a MP traria redução na conta de luz dos consumidores brasileiros por meio da quitação de empréstimos. Mas a MP também prorrogava o desconto de 50% sobre os custos de uso das redes de transmissão e distribuição elétrica para geradores renováveis, mas notadamente para eólicos e solares. A MP 1212 desfazia o comando da lei nº 14.120/2021, que determinou a extinção gradual desses descontos. 

Para a Aneel, essa determinação significaria receber os pedidos das usinas que queriam usufruir do benefício, analisá-los e autorizar ou não, além de definir início da contagem dos prazos, o que varia para cada usina. Não se tratava de um trabalho trivial, já que segundo a Aneel foram recebidos 2.035 pedidos para acessar o desconto, mas 1.429 foram reprovados e 5 aprovados sub judice.

Enquanto a MP estava valendo, a Aneel tinha de correr contra o relógio para fazer todos os cálculos, consultar o setor, instruir processos… Tudo isso enquanto seguia com suas competências usuais, de fiscalizar a calcular tarifas. 

Nesse período, Silveira começou a subir o tom contra a agência, exigindo que a Aneel desse sequência ao que determinava a MP, no prazo de vigência sem torná-la lei, para que os geradores pudessem fruir dos benefícios – um pleito vocalizado a Silveira não apenas pelos geradores, mas também pelo grupo de parlamentares do Nordeste, onde estão muitas dessas usinas. Empresários e parlamentares pressionavam Silveira pela aprovação, que por sua vez atacava a Aneel. 

Com a MP 1232, a pressão de Silveira sobre a Aneel cresceu. Essa MP ficou conhecida como aquela que permitiu que o grupo J&F, dos irmãos Wesley e Joesley Batista, assumissem o controle da distribuidora do Amazonas e ainda comprasse usinas termelétricas da Eletrobras com benefícios nas duas operações. 

Usando o mesmo modelo, o governo publicou a MP 1232 para que seus efeitos fossem atingidos durante sua vigência, com a empresa Âmbar (subsidiária da J&F) assumindo as operações sem que o Congresso precisasse aprovar a MP. A MP trouxe detalhes fundamentais para tornar mais atraente a troca de controle: ela determinava que os credores da Amazonas seriam os compradores das usinas termelétricas da Eletrobras. 

E novamente, para que tudo acontecesse dentro dos planos do governo, a Aneel teria uma série de obrigações a cumprir, como a de analisar um plano apresentado pela Ambar para assumir o controle da empresa, verificar técnica e financeiramente a viabilidade do plano, e apontar o montante que seria aceito em flexibilizações (ou seja, quanto dessa conta deixada pelo controlados anterior da Amazonas Distribuidora seria perdoado e quais metas que a Âmbar teria de assumir ao comprar a empresa, mas que seriam perdoadas nesse caso. 

Silveira passou a criticar a Aneel aberta e publicamente sobre a suposta demora em aprovar o plano da Âmbar. Reclamava que a agência estava impedindo o governo de fazer suas ações. 

Em nota técnica assinada por mais de uma dezena de nomes, os servidores de carreira avaliaram que, dos cerca de R$16 bilhões em perdão que a Âmbar pedia, somente algo em torno de R$8 bilhões poderia ser aceito pelo regulador. 

A nota técnica ainda precisava ser votada pela diretoria colegiada, o que aconteceu durante as últimas semanas de agosto, tomando contornos de epopeia e tragédia no momento em que o antigo controlador da Amazonas Energia ingressa na justiça amazonense para pedir que a Aneel aprovasse o plano, algo que invertia a lógica da regulação e da técnica. Com as decisões judiciais, os diretores da Aneel se viram obrigados a tomar decisões contra o que calculou a área técnica, sob a pressão de decisões liminares. 

Ao fim e ao cabo, a Âmbar assinou o plano de controle da Amazonas faltando poucos minutos para que a MP 1232 perdesse validade. 

Foi nesse período que Silveira subiu seu tom contra a Aneel, dizendo que os diretores estariam “boicotando” as decisões de governo, pois seriam indicados de Bolsonaro. 

Outro ponto que rendia a Silveira críticas à Aneel no segundo semestre de 2024 foi a Bandeira Tarifária, que Silveira desejava que fosse verde ou amarela, ao passo que a Aneel – com base em informações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) – calculava em vermelha. 

E aí acontece o episódio do dia 11 de outubro, em São Paulo. 

BOICOTE BOLSONARISTA?

As agências reguladoras não são órgãos controlados pelos ministérios, sendo autarquias independentes com diretores indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado. São entidades de Estado, não de governo. 

Entre os papeis institucionais das agências está o de atrair investimentos privados nos setores de infraestrutura, já que ao serem isentas e técnicas, poderão regular as condições contratuais – como o cálculo das tarifas. Ter uma agência técnica e independente é importante para manutenção da atração de investimentos, já que contratos de concessão duram 20 a 30 anos, tempo maior que os quatro ou oito anos de um mandato presidencial. 

Apesar de sempre haver descontentamentos entre ministros e presidentes da República com diretores de agências, os governantes de direita costumam reduzir suas críticas, já que são favoráveis aos investimentos privados. Não é possível fazer omelete sem quebrar ovos, e para fazer privatizações é preciso ter agências minimamente independentes. 

Mas no caso do governo Lula, o ideal do setor elétrico é que ele seja muito mais estatal do que privado, com empresas como a antiga Eletrobras comandando os investimentos. Neste sentido, para a atual gestão as agências são apenas um estorvo. E mais: o mandato Lula 3 poderá nomear apenas um diretor na Aneel, em vaga que já está desocupada desde maio de 2024. 

Dizer que os diretores da Aneel são bolsonaristas foi a estratégia de Lula e de Silveira para justificar a vontade em intervir e mudar a Lei das Agências, para que mandatos dos diretores coincidam com o do presidente. Também se avolumam ideias criativas no Congresso de tentativas de controle das agências, como subordiná-las a um órgão central. No discurso, afirma-se que o objetivo é reduzir a “captura” dos diretores por grupos econômicos. Na prática, o que deseja Lula, Silveira e os ministérios é aumentar a captura governamental – e consequentemente política – das agências. 

A crise da Enel serviu ao discurso do governo Lula, pois deu munição para que se abrissem investigações no TCU e na CGU sobre a atuação da Aneel. No Congresso, pipocam ideias de PLs para dar mais poder a municípios em caso de apagões e retirar competência da Aneel, além de pedidos de informação aos diretores. 

As agências costumeiramente sofrem com pressão política, já que o processo de aprovação de diretores depende de aval dos senadores, o que tem tornado mais comum ouvir em Brasília que algum senador é “padrinho político” de algum diretor de agência. Mas por outro lado, acreditar que esse processo de apadrinhamento significa que o senador exerce controle sobre a diretoria é um profundo engano. 

As diretorias são colegiados, no qual o peso do voto de cada diretor é igual e as decisões são tomadas por maioria. A instrução dos processos segue as áreas técnicas, compostas por quadros de altíssimo nível acadêmico e formado por servidores concursados. Não é incomum ouvir que os especialistas das agências tenham mestrado e Doutorado nas áreas em que atuam.

No caso da composição atual da Aneel, três dos quatro diretores se enquadram nesse perfil, sendo servidores concursados dos quadros da Gestão Federal, de especialistas da Aneel ou de advogados da Advocacia Geral da União (AGU). 

No final das contas, na guerra do presidente e de Silveira contra as agências quem perde é o consumidor de energia, telefonia, combustíveis, transportes…. Perde o país com mais captura política e os brasileiros com agências mais influenciadas pelo governante de turno.

Equipe BAF – Direto de Brasília

Foto: Ricardo Botelho, MME

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Essa reportagem é uma produção em parceria com The Brazilian Report. Leia a versão em inglês em:

https://brazilian.report/power/2024/10/29/regulatory-agencies-political-control-lula

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